quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
A Crise Existencial provocada pelo Aborto Espontaneo
Para muitas pessoas, a gravidez e a maternidade são acontecimentos naturais na vida de qualquer mulher, que decorrem sem grandes sobressaltos ou problemas. Para muitas pessoas, ter filhos significa alcançar um pequeno pedaço de imortalidade. A fertilidade é venerada em quase todas as culturas e a gravidez é um marco no desenvolvimento adulto, é uma ponte entre gerações e uma ponte para o futuro, rica em simbolismo. A gravidez é um acontecimento que se estende a toda a família, modificando rapidamente o relacionamento dos futuros pais com os seus próprios pais e todos aqueles que os rodeiam. A chegada de um filho marca o final do período turbulento da adolescência e afastamento da família, permitindo a reconciliação e a aproximação à família na idade adulta.
Tanto as meninas como os meninos são expostos a pressões subtis ao longo do seu desenvolvimento para terem filhos. As meninas aprendem a brincar com bonecas, a cuidar delas, a segurá-las de forma correcta exercendo um papel maternal desde os primeiros anos de vida. Os meninos antecipam desde cedo as alegrias de criar os seus filhos, de os levar ao futebol, de praticar desporto, etc. Na idade adulta, a maior parte dos casais deseja ter filhos, presumindo a sua capacidade para os ter.
Para algumas mulheres, a gravidez não é bem sucedida e, por vezes, surge o aborto espontâneo. A morte de um bebé é sempre um choque, mesmo que seja um bebé que não se chegou a conhecer. Não faz parte da lei natural de vida, não é algo que seja esperado, pois os bebés representam o início da vida e não o final. Por causa desta enorme contradição, a morte de um bebé é tão difícil de acreditar e aceitar.
A sociedade nem sempre aceitou (e provavelmente ainda não aceita) que o sofrimento de perder um bebé por aborto espontâneo pode ser comparável, em termos de trabalho de luto, à perda de uma criança com alguns anos de idade. Independentemente de se tratar de uma criança com um ano de idade, uma criança que viveu apenas algumas horas ou um feto com malformações, existe sempre uma reacção de sofrimento emocional, que implica depois a existência de um ajustamento psicológico, tanto individual como familiar.
Ao aborto segue-se um trabalho de luto, que poderá trazer maior ou menor tumulto, conforme a relação da mulher com este bebé, que não chegou a nascer. Além da perda física, existe a perda afectiva. Perdemos um filho que não chegámos a conhecer, a embalar, a alimentar, a abraçar e, com ele, perdem-se as ilusões e sonhos que tivemos para o seu futuro.
É importante que estas mulheres entendam que não estão sozinhas. O aborto espontâneo ocorre em cerca de 25% das gravidezes humanas. É normal que sintam uma dor enorme e difícil de suportar. O tempo é um grande aliado e, com o passar do tempo, é possível ultrapassar a dor.
O trabalho de luto é um processo doloroso. A pessoa passa por fases onde surgem sensações fortes, que parecem permanecer para sempre. É importante que a dor seja vivida, que os sentimentos não sejam ignorados, pois a dor faz parte do processo de recuperação. A dor da perda de um filho vai acompanhar a pessoa durante toda a sua vida, mas com o tempo ela vai aprender a encarar esta dor de forma diferente, aprendendo a acreditar que pode tentar novamente.
Todas as pessoas que passam por um processo de luto, seja ele qual for, passam por várias etapas, que fazem parte do processo normal de adaptação e que seguem um curso previsível (apesar de, naturalmente, existirem algumas diferenças de pessoa para pessoa):
- Negação: Quando a perda é muito dolorosa, é normal que seja difícil acreditar no que está a acontecer. A negação permite uma reavaliação da situação de perda, enquanto a pessoa ainda não está preparada para a aceitar.
- Dor: A recuperação ocorre através da dor. A dor pode manifestar-se sob forma de depressão e tristeza, mas também pela diminuição das defesas do organismo (originando gripes e constipações), dificuldades ao nível de memória e concentração, raiva contra si mesma, contra o pai do bebé ou contra Deus.
- Culpa: Podem surgir sentimentos de culpa relativos a acontecimentos que ocorreram durante a gravidez ou pequenas negligências, que são formas de procurar razões para o sucedido.
- Aceitação e adaptação: À medida que se aprende a aceitar a morte do bebé e a reconhecer que esta experiência originou uma mudança irremediável, a dor vai diminuindo. A memória da gravidez e do bebé passará a ocupar um lugar significativo na vida e no coração da mulher. Gradualmente começará a sentir-se melhor e voltará às suas actividades quotidianas habituais. A dor da perda de um bebé nunca desaparecerá por completo, mas pode ser ultrapassada e diminuir, deixando espaço para novos planos para o futuro.
INDICAÇÃO DE LEITURA
WALSH, Froma; McGOLDRICK, Monica. Morte na Família: sobrevivendo às perdas.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p.46 a 67
NICHOLS, Michael P.; SCHWARTZ, Richard C. Terapia Familiar : conceitos e métodos. Tradução de Maria Adriana Veríssimo Veronese. 7ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. 474p
A Vivencia do Luto Familiar
O que se pretende falar aqui são partes de indagações feitas frente ao luto de um filho, sem maior pretensão teorizante e, como tais, na expectativa de que assim sejam ouvidas.. Talvez seja um convite de discussão ao tema: "vamos falar da morte?". Esta, que é tabu maior que o sexo, maior ainda por tratar-se da morte de um filho - dor que se recobre em silêncio, por se tratar de uma dor inominável.
O luto é um longo caminho, que começa com a dor viva da perda de um ser querido. A pessoa enlutada vive um sentimento amoroso permeado por uma saudade imensurável e envolto numa dor indizível face à perda abrupta. É quando duas situações se encontram absolutamente inseparáveis: o amor e a dor. Amor pelo excesso de investimento colocado na pessoa que se foi. E dor porque esse suporte real nos deixou. O sentimento de abandono e o caráter definitivo de sua ausência são os mais devastadores que se têm, ao se deparar com a realidade da mais pura saudade. A esse respeito, escreveu Nasio: "As manifestações da dor - abatimento, grito e lágrimas - a mantêm como se a pessoa que sofre estivesse arrastada pela prova dolorosa ..( ) Querem sofrer porque a sua dor é uma homenagem ao morto, uma prova de amor" .
As perdas costumam ser nomeadas para que possam ser minimamente suportáveis. Ao perder uma mulher, alguém passa a ser viúvo; aquele que perde os pais, órfãos; cônjuges que se separam, divorciados; mas as mães que perdem seus filhos não encontram sequer algo para nomeá-las.
Certa psicanalista contava sobre os pacientes que sofrem de dor fantasma – a dor resultante da perda de um membro do corpo que se constitue num desafio para os médicos. O "membro fantasma" lateja, coça, aquece, esfria, dói, enfim, a dor é viva, presente, embora o membro esteja ausente, morto. Só o tempo permite aos pacientes conviver nesse estado. "Penso que a dor da perda de um filho é próxima dessa”, dizia.
Ora, estamos falando de um membro do corpo, que dirá de um filho saído de nossas entranhas que, como diz o poeta Chico Buarque: "Oh,pedaço de mim, oh pedaço amputado de mim...!" É uma mutilação! No texto: "Luto e culpa na análise e na vida", de Marco Antonio Coutinho Jorge, o autor relata sobre uma paciente em trabalho de luto pela morte do marido. Conta que abandonara o tratamento anterior, pois a analista fazia intervenções impertinentes, como: "Já vem você com seu lado melancólico?” “Já vai começar com esse discurso histérico?". Segue o autor:
"O que se pode observar de saída é que tais intervenções desautorizavam o sofrimento dessa mulher e insinuavam simultaneamente, que ela se aproveitava dele para usufruir de forma particular .
Diante dal perda, há aqueles que se jogam no trabalho de forma obsessiva, quando este o permite. Há outros que ficam alheios,impotentes, paralizados!
O filme "O quarto do filho" relata a experiência da morte do filho de um psicanalista, e este se vê na condição de afastar-ser da clínica por tempo indeterminado.
Marie-Hélène Brousse, em seu livro nos fala sobre a terapeutização da vida, que vivemos numa sociedade dos tratamentos da dor de existir. Atribui uma vitória à terapêutica, que está em todo lugar e de todas as formas.
O luto não é terapeutizável, não há remédio para essa dor. Lembro de uma revista que li, cujo título da reportagem era: “A dor que não termina”. São relatos de pais que perderam seus filhos de maneira trágica e os relatos da reação particular que cada um teve. Desde aquele que ao ver seu filho morto por atropelamento e que o carrega nos braços para ser morto pelos carros que passavam, como aquela mãe que se recusou a comer desde a perda de sua criança vindo a falecer 4 meses depois de inanição. A reportagem começa justamente falando que o luto de quem perde filho é diferente de qualquer outro... e pode tornar-se insuportável o peso de tocar a vida adiante. A morte é sempre motivo de angústia e tristeza, mas a morte de um filho é uma tragédia contra a natureza, um desastre além da razão.
O historiador francês Philippe Ariès conta que até o final da Idade Média, não se guardavam sequer os retratos das crianças. Se elas cresciam e se tornavam adultas, a infância era um período sem importância em suas vidas. Se morriam cedo, não se considerava que aquela coisinha desaparecida fosse digna de lembrança. Era o período das epidemias, das pestes, das doenças que ninguém sabia como tratar, e a morte era tão comum, que era natural ter vários filhos para que só alguns sobrevivessem. Montaigne, filósofo do séc XVI, dizia: “perdi dois ou três filhos menores, mas sem desespero”.
Quanta distância para os tempos em que vivemos: famílias pequenas, poucos descendentes...Vivemos em um período desbussolado onde não se pode mais, como antigamente, encarar a tragédia como vontade de Deus. Diante de uma determinação superior, restava apenas se conformar. As mães, no passado eram poupadas de qualquer tarefa por um período de no mínimo um ano para se recolherem. Não há mais tempo para resguardo, nem para recolhimento. A licença de uma semana (até o sétimo dia) é o que é amparado por lei. Os tempos modernos, onde impera a ditadura da alegria não oferece espaço nem lugar para a dor, especialmente uma dor como essa. “Reaja!”, “Seja forte!”, “Não fale mais no assunto!”, “Aprenda uma lição com sua dor!”, “Não fique paralisado pela dor!”
“Enfrente!”, são imperativos ouvidos de modo inoportuno e impróprio.
Portanto, nada de fórmulas, ou de dizer como alguém deve reagir, ou fazer, ou dizer.
Aliás, não há muito o que dizer. Aliás, não há nada o que dizer.
A perda de um filho não é uma dor qualquer. Implica numa longa travessia de luto, reinventar a vida a cada dia e conviver diariamente com a saudade.
Respeitoso foi o apoio recebido de Romildo do Rego Barros que assim se expressou: "Não tenho a pretensão de saber como você está se sentindo, mas sei que as saudades podem, paradoxalmente, inspirar a nossa vida e nos empurrar para frente". Essa frase enigmática, a princípio, e até de um certo ponto pautada numa impossibilidade...
Outro questão que convém marcar é: que tempo há para o luto?
O luto é muito parecido com a depressão - afetivamente falando - mas esta é sem a perda real do objeto, Há cobranças estrondosas relativas ao tempo expressas como:: "Você ainda está chorando deste jeito?
Era preciso encarar, de frente, o que me parecia impossível: conviver sem o olhar e a voz desse filho tão amado.
Que tempo para o luto? Até Jesus chorou no túmulo de Lázaro. Então choro é sinal de que também amamos QUEM PARTIU PARA OUTRA DIMENSÃO.
As mães não deveriam chorar a morte de seus filhos. Ao concebê-los, deveriam receber, com carimbo do céu e assinado por Deus, uma certidão de garantia, para vê-los crescer, sempre saudáveis e felizes. Ao lado deles, poderiam comemorar suas vitórias, suas conquistas, e depois de muito tempo, quando sentissem a conclusão de seu ciclo de vida, elas teriam o direito de serem veladas por seus filhos, todos eles, a fim de seguir feliz sua viagem de reencontro ao Criador. Os filhos, para as mães, deveriam ser sempre vivos, pois não foram concebidos para a morte, mas para a vida. Nada neste mundo é mais triste, mais doloroso do que choro de mãe que perde um filho.
Elas não merecem isto. Nunca mereceram.
Jamais merecerão.
Melancolia........ Cecilia Meirelles
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